Complexo de Édipo - caso real

A GAROTA SARAIVA





“Frustrar alguém no amor é a mais terrível decepção;
é uma perda eterna para a qual não há
compensação na vida ou na eternidade.”
(Kierkegaard)





Lembro-me do dente colocado embaixo do travesseiro. Ouço ainda meu grito de alegria ao encontrar a moeda que a fada azul deixou para mim no lugar daquele precioso dente de leite.

“... com Deus me deito, com Deus me levanto...”

Conta minha mãe que papai encantou-se tanto com o meu nascimento que escolheu para mim um nome de rainha e, no dia exato em que nasci, 12 de outubro, dia da criança, comprou o mais lindo enxoval cor-de-rosa e inundou o quarto do hospital com laços, rendas e fitas e muitos sorrisos de felicidade pela chegada da filha primogênita.

Minha mãe também sempre dizia:

“Nem parecia o mesmo homem que, ao saber da gravidez, encheu-se de ira, rejeitou a mim e a criança. Era sempre assim, não podia me ver grávida que mudava da água para o vinho.”

Dois anos após o meu nascimento nasceu outro menino e morreu aos seis meses. Logo após nasceu outro menino, que vingou, substituindo o primeiro. Mas eu permaneci a filha dileta porque tinha muita parecença com meu pai, tipo físico, habilidades, jeitos peculiares... o que vim a descobrir ao longo da vida.

“ Ela é a cara do pai.” repetia minha mãe, o que me agradava, embora desejasse ser também como ela, bela e comunicativa. “Meninos são mais parecidos com a mãe. Meu marido é muito inteligente, mas antipático, não sabe se comunicar com as pessoas.” Acrescentava ainda: “ Na minha família somos diferentes: alegres, sociáveis, bem humorados.” Eu desejava ser também alegre e bem humorada como ela.

O que sabe sobre si mesma? Atravessou momentos contundentes em sua vida, erupções recorrentes que, embora devastadoras, produziam uma dor difusa, mas que doía muito e o tempo todo. Ela reagia para jamais se acostumar com aquela dor. Muitos aluviões ficaram presos em sua história, ao mesmo tempo em que partes de si mesma foram arrancadas pelo vento forte demais ou pela exigência de desejos que não eram os seus. O que restou, inacreditavelmente, se transformou em tecido depurado, embora com alguns buracos. Algo como o tule de náilon que algumas noivas exibem em seus casquetes. Há também as latinhas, (iguais àquelas arrastadas pelos carros dos recém-casados) que fazem um barulho insuportável, as quais, infelizmente, quase se acostumou em arrastar.



“O que eu quero para mim?”


Tem por hábito elaborar pequenos rituais para afugentar os fantasmas da sujeição e procura encontrar nela mesma um meio de desatar esse nó fincado bem no meio do seu sossego. Na tentativa de desviar-se de emoções oportunistas trazidas pela angústia, procura uma forma de explicação para as suas inquietações, que seja asséptica e indolor, já que, definitivamente, não quer experimentar sofrimento, mas quer descobrir a verdade, seja lá o que for a verdade.


Antes, o que é a realidade? Ela sempre se acreditou uma garota sensata, apesar da sua luta contínua entre ilusão e realidade para descobrir em que momento do tempo repousa a menina do enxoval cor-de-rosa. Em que momento ela se transformou em filha e passou a externar as características de criança adaptada? Teriam seu comportamento, gestos e desejos se formado a partir de um suposto gancho cultural, na verdade um viés normativo para o pleno exercício do poder do outro?


“Sou o que penso que sou?”


Esta pergunta tem sido o agente provocador da sua história, o norte na busca de uma convicção sobre si mesma; convicção que seja decorrente de íntimas questões antitéticas, contraditórias, intercambiantes .... mas que possa produzir a ferramenta adequada para abrandar a dor de ser o que lhe dizem para ser. Dor que não quer mais. Servem-lhe apenas as dores decorrentes da trajetória do herói, estas se dispõe a experimentar, porque serão resultado de alguma autonomia, de sua ousadia e, claro, de um pouco do desígnio dos deuses, porque esses, estarão sempre em volta para dar palpites. Ela quer participar da elaboração do roteiro da própria vida; livre arbítrio, lhe parece, é transcender a determinação de ser mortal. Seja qual for o caminho, embora Cloto e Átropos sejam irredutíveis, com Láquesis sempre será possível negociar. Já está de bom tamanho essa invariância subjacente de ser mulher, branca, brasileira e míope somada a este mim onipresente, chamado inconsciente , real condutor das muitas ações que praticamos na vida.

“Por que faço o que faço?”

A dúvida traz consigo a necessidade de compreender a si mesma e ao outro, sabendo perfeitamente que outro é um universo, coletivo, contraditório e que ela pode ter se equivocado na identificação do desejo alheio.


“... cai cai balão, cai cai balão, aqui na minha mão...”


Que maravilhosa experiência , aos nove anos de idade, poder assistir ao balé O Lago dos Cisnes no Teatro Municipal de S. Paulo. Meu irmão era muito pequeno para nos acompanhar, minha mãe não se agradava de clássicos, daí fomos juntos, eu e meu pai. Recordo as luzes mágicas, o tapete vermelho, as escadarias, as pessoas vestidas com roupas de festa, falando baixo, movendo-se com vagar, elegantes nos modos e nas falas.





Os registros musicais e as luzes coloridas tiveram um efeito de mágica sobre mim principalmente quando pontuaram a entrada no palco de Odila, o cisne negro. À intensidade dos acordes juntava-se a voz sussurrante de meu pai, explicando-me baixinho cada detalhe daquela que era a sua peça favorita. Naquela noite eu me senti importante por ser merecedora da atenção do meu pai, fonte de segurança e amor.


Disse minha mãe, e muitas outras coisas dissera, na contra mão das minhas convicções, que meu pai era bruto como marido, não sociável, nem amigo nem acolhedor. Segundo ela, mais defeitos que qualidades tinha. Ainda assim era ele quem comprava nossas roupas e brinquedos e fazia bolos de fubá salpicados com sementes de erva-doce. A mim ensinara, entre muitas outras importantes lições, como dobrar o jornal sem amassar para poder ler folgadamente. Eu lia as notícias sobre política e depois nos sentávamos os dois, a mesa do café para trocar opiniões. Minha mãe detestava estes agradáveis momentos de nós dois.


Aos 12 anos li Germinal e assisti a Flor de Pedra, belíssimo filme russo premiado. Mergulhava com grande prazer no mundo intelectual descortinado por meu pai por sentir que minha facilidade em aprender o tornava orgulhoso e sabia que somente eu podia causar-lhe esta alegria já que meu irmão era pequeno demais para participar destes momentos e à mãe pouco interessavam nossas incursões culturais. Assim, desde cedo freqüentei teatros, museus, participei de eventos que naturalmente me levaram a adquirir conhecimentos incomuns para uma menina de pouca idade. Tais saberes me fascinavam e através deles eu obtinha a admiração de meu pai. Lembro-me também de que, embora não desse muita importância a nossos passeios, minha mãe tinha sempre o cuidado de me vestir adequadamente; mesmo pequena eu usava saias pregueadas, sapatos de verniz e boinas coloridas, de acordo com a formalidade necessária ao se comparecer aos concertos do Teatro Municipal de São Paulo. Muitas vezes, no retorno a casa, após um longo dia de andanças por algum museu, era trazida ao colo, sonolenta, descalça, pés inchados, como qualquer outra criança depois de uma festa.


“... boi, boi da cara preta, pega essa menina que tem medo de careta...”


Nossa família mudou-se muitas vezes, era sempre difícil pagar o aluguel, mudávamos para casas sempre menores e mais baratas, até que de São Paulo nos mudamos para Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.


O clima quente fez melhorar a saúde de todos, muito embora os conflitos entre mamãe e papai viessem a agravar-se até ao ponto em que ela decidiu separar-se .
Todavia, antes de intentar uma separação legal, resolveu fugir de casa, levando na mão direita apenas uma mala, e o filho caçula pela outra mão. Por obra do acaso ou de alguma Moira muito atenta, chegava eu mais cedo da escola quando dei de encontro com os fujões.

“Onde vão?”



“Às compras.”


“Vou junto!”





Ela tentou dissuadir-me; em vão. Pressentí o perigo, o vazio, o rompimento, o abandono, enfim, todos os vagões assombrados puxados por aquela maria-fumaça que constituía a minha família; nós quatro vivendo juntos e ao mesmo tempo separados pelos nossos interesses contraditórios e afetos estanques; tão pouco sabíamos uns dos outros ...

Com a roupa do corpo, um vestido branco bordado de joaninhas vermelhas, me lembro bem, sem mala nem esperança, lá fui eu atrás daquele par que não me reconhecia como parte de suas vidas e que também não se agradava de minha companhia. Mesmo assim, fui junto. Mãe e filho tinham sido sempre como sementes de romã, grudadinhos, indispensáveis um ao outro como pulmão e oxigênio, ele nascera como que para compensá-la da morte do primeiro filho. Eu tentava compreende-los, mas na verdade não compreendia, e experimentava ciúmes por não participar de seus códigos. Ferida e assombrada, ainda assim fui junto realizar a fuga que não era minha e para a qual sequer fora convidada.

Ficamos dois dias em casa de parentes em São Paulo até que meu pai veio buscar-nos entre lágrimas de reprovação e queixas de intensa amargura. Como pudera eu, filha tão querida, não tê-lo avisado da fuga e, além do mais ter acompanhado a mãe no seu ato irresponsável? Conivente, não sabia o que significava até aquela hora, mas sabia que não era isso, essa palavra doía, ele não percebia? Minha mãe, ocupada com suas próprias dores, nada disse na noite daquele reencontro, nem nas outras noites que se seguiram depois que voltamos para nossa casa. Senti uma grande vontade de ir embora, mas não sabia para onde, então não fui.

A família se reuniu feito um cacho de uvas, cada qual dependurado em separado no frágil cabinho, embora eu ainda identificasse minha mãe e meu irmão como caroços de romã, sempre agarradinhos.


“ ... Nosce te ipsum..” Conhece a ti mesmo

Montanhas parecem pontes que permitem acesso aos deuses; lá de cima eles espiam os humanos, provocam mudanças em suas vidas, interferem em seus arbítrios, mas são apenas figuras míticas que pedem para ser decifradas, trazidas à luz e corajosamente confrontadas – e isto a garota não aprendeu nos livros que leu, mas nos contos que viveu. Fadas, como as bruxas, usam chapéu em formato de cone, usam varinhas, voam, proferem vaticínios, preparam poções e aspergem pozinhos mágicos... A garota está a procura de compreender esta parte de viagem rumo ao seu mito pessoal, livre dos parâmetros daquele pai soberano, cujo código normativo resta gravado nela mesma, ele que ainda hoje parece pedir para que ela seja a personagem que ele idealizou. Desejo dele, ao qual ela dedicou o maior empenho em corresponder. Se os homens criaram os deuses para abrandar a própria angústia acabaram angustiados por se virem controlados pelos deuses que criaram. Contraditório, por isso mesmo, humano.



Quer repassar os seus atos, reconsiderar os fatos vividos e, principalmente substituir o pensamento pela espontânea emoção e deixar brotarem as palavras, e, através das palavras, expressar a sutileza da verdade que, lhe parece, não é mais que um volátil fonema na sutil marcação de uma diferença quase imperceptível mas definitivamente contrastante como ocorre, por exemplo na frase: de fato há um gato no mato. Sem dúvida, fonemas são como duendes brincalhões, escondem coisas, exibem outras coisas, mudam as coisas de lugar só para nos fazer correr atrás.


Brincava com as palavras: saudade, sal, idade, amor, romã, mãe, pão, sustento, suporte, pai, vai, sai, cai, daí?


Meu pai era o rei naquela casa, embora mamãe reinasse efetivamente, porque ela tinha emprego quase sempre e o pai eventualmente ; eu entendia que quem tem o dinheiro tem o poder, portanto parecia justo que as ordens viessem através da rainha. Mas não, não parecia justo, tanto que estes procedimentos me causavam uma mistura de inveja, raiva, muita zanga e pouco amor. Neste caldo cozinhava meus medos e como defesa investia minhas energias nos estudos, crente que boas notas escolares me fariam merecedora do afeto, respeito e consideração daqueles que tanto amava e que às vezes também odiava. Nesta fase eu muito desejava ser um caroço de romã.


“... ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...”


Passados cinquenta anos continuamos unidos por um dogma estático, reafirmando a ideação fantástica de que o outro é o inferno; minha velha mãe, senhora respeitável, declama versos bíblicos aos ouvidos indiferentes dos familiares mais jovens, o filho caçula, hoje advogado, desfruta os louros da alta posição social e a professora de Filosofia continua às voltas com livros e alunos, garimpando explicações para a inquietação existencial do ser humano, que sempre deseja, mas nem sempre sabe o que quer. Meu pai faleceu há alguns anos, mas isso é fato, e fatos não compõe a história do cacho de uvas, nem da romã. Nossa história presente não traz fatos, nem identifica responsabilidades, mas denuncia a defesa incondicional que fazemos de nossas convicções e a negação sistemática dos movimentos mesquinhos que realizamos ininterruptamente ao longo de nossas vidas, separados no amor, mas entrelaçados pelas Eríneas, indiferentes ao fato de que o Amor, a Tristeza, o Ódio, a Raiva e o Ciúme são irmãos, nascidos no mesmo instante do esperma de Urano. Dissimulados, refugiados dentro das fatiotas sociais , tentamos em vão ocultar a feiúra das nossas humanas emoções exacerbadas e dedicamos a maior parte do tempo a alardear as nossas verdades e a lançar sobre o outro toda a sorte de acusações.

“... atirei o pau no gato mas o gato não morreu ...”

Fomos deixados por um tempo em casa de parentes, dada a difícil situação financeira da família. Éramos bem alimentados, brincávamos, disputávamos tudo o que de bom havia na casa dos parentes, inclusive o amor quentinho da tia, apesar da saudade de papai e mamãe. Doía também ouvir do tio: “É sempre assim. O chopim põe os ovos no ninho do tico-tico e ele que se vire pra criar.” Eu e meu irmão sabíamos quem eram os filhotes de chopim mas isso não tirava o nosso apetite.



A garota sentia necessidade de pertencer a alguém, a algum lugar. Havia primeiramente a vontade, quase um instinto, de sobreviver por si e de existir para si mesma, ser ao mesmo tempo o barro e o oleiro; moldar-se, elaborar um destino próprio na medida do possível, e, por que não, à essa altura dos acontecimentos, extrair de si mesma o que de mais precioso tinha, verdes sementes de amor, em qualquer medida, na medida do impossível até. O amor da mãe, não percebido pela filha, provavelmente estava lá, atávico, entalhado no totem familiar.


Após o preparo de um ano entre orações, leituras da Bíblia, jejuns e confissões de pecados que sequer praticara, a garota habilitou-se ao ritual da primeira comunhão, direito de usar vestido branco e de incorporar um renascimento às avessas.


A mãe usara suas economias para comprar o vestido branco, bem mais simples que o modelo indicado pelas freiras, poucos bordados, nenhuma renda e para a cabeça o casquete mais barato. Ao invés de véu de seda, um tule grosseiro que pinicava a face ao lhe roçar, detalhe que não passou despercebido pelas outras meninas, uma delas de imediato partindo para o deboche:

“ Esse véu furado mais parece um mosqueteiro.”


A garota, na imediata resposta, ergueu a vela que segurava e a quebrou na cabeça daquela que debochava. Restou-lhe ainda a humilhação de, durante toda a cerimônia, equilibrar a vela quebrada, presa agora apenas por um barbante, e que a cada passo seu, caía de lado, como se imitasse um insuportável desmaio.


“... Deus, ondes estás? Será que também te escondes? ...”


As crises entre o casal cresciam em número e intensidade. Para a mãe, fugir não fazia mais sentido, era preciso formalizar a separação: o desquite era inescapável. O pai, desempregado outra vez, destituído de poder, exaurido na sua posição de chefe daquela família, agarrou-se
aos filhos como únicos e derradeiros suportes de sua vida naufragada. A garota sabia que o pai sofria muito diante da possibilidade de separação; sofria ela também por ele e por si mesma, pois entendia que ela e o irmão eram partes vulneráveis neste desenlace. O que seria dos chopins? Despossuídos de um lar, de responsáveis capazes de ocupar-se com suas crias, as duas crianças eram não mais que testemunhas de duelos vazios em que as partes se agrediam mutuamente na ânsia de provar cada um as suas razões, exigindo contemplar a sua interpretação como verdadeira.

“ ... o cravo brigou com a rosa ...”


Eu adorava ir à praia; sol, calor, luz, alegria. Mas não naquela noite, quando meu pai nos levou para a beira da praia; fazia frio, estava escuro e eu sentia medo. Acho que meu irmão também sentia. Eu estava com 13 anos, tirava boas notas na escola e tinha muita vontade de ser feliz.
Meu pai sentou-se ao nosso lado no banco da praia de Copacabana, pegou na minha mão e olhou nos meus olhos assustados com os seus olhos tristes e o peso daquele olhar suplicante caiu sobre mim como uma avalanche de pedras:



“Você é a mais velha. Você tem que convencer sua mãe a mudar de idéia. Não podemos separar a família. Fale com ela. Faça com que desista da separação.”


A maré estava na vazante e ia levando com ela as lágrimas dos olhos verdes do meu pai querido e as minhas lágrimas salgadas que escorriam sem eu nem bem compreender porque. Até que se derramou a frase inesquecível:



“Se ela não mudar de idéia vou dar guaraná com veneno para vocês dois e depois vou tomar também.”


As luzes dos prédio em frente ao mar, o doce sabor do guaraná tantas vezes experimentado, o gosto amargo do fracasso trazido para ela, o não perceber pelo pai que aquela responsabilidade colocada sobre os ombros da garota era fardo insuportável e que não lhe pertencia.


“Cabe a você resolver este problema. Posso falar com ela, mas não sei se posso convencê-la. O guaraná ... eu não vou beber. Nem vou deixar você dar para meu irmão .”


Ainda estão lá em frente à praia um homem e duas crianças, congelados em um tempo que não flui jamais. Eles não mais se movem, mas não param de sofrer.


Nesta noite a garota com nome de rainha foi esvaziada de suas últimas esperanças e a família dividiu-se, posto que já dividida estava; o pai mudou-se para outra cidade levando nos braços seu filho agora predileto e a garota, sabe-se lá porque, ficou com a mãe no mesmo apartamento, na mesma cidade. Foi uma divisão arbitrária, mero truque de duendes perversos, pois a partir daí todos migraram para insuportáveis terras geladas e sombrias.


Nunca mais nos olhamos nos olhos, meu pai e eu, nunca mais nós quatro deixamos de culpar uns aos outros, nunca mais nos permitimos a paz. As águas do mar tornaram-se amargas para mim; minha mãe lamentava a ausência do filho querido, meu pai ocupava a infância de meu irmão com as suas verdades e, tendo este filho pequeno como forte vínculo entre o casal, de certa forma reconstruíram seus afetos e tentaram satisfazer suas necessidades. De minha parte procurei construir a família que idealizei exemplar. Casei, tive filhos, descasei, procurei por mim mesma entre aqueles que amei sem perceber que estava à procura de alguém que me explicasse o balé, me colocasse no colo e que prometesse me amar para sempre. Para tanto, fui disciplinada, trabalhadeira e estudiosa e, tanto desejei acertar, que me tornei rígida e controladora. Quase sempre tirei nota 10 mas quando terminava a prova via que todos os outros alunos já estavam no pátio do recreio.



“ ... nana nenê que a cuca vem pegar...”


Depois de alguns anos morando em São Paulo meu pai casou-se outra vez e mudou-se para lugar incerto e não sabido, com devida exceção para o filho, que o visitava regularmente. Segredos às vezes são mal guardados ou intencionalmente ventilados. Enfim, alguém disse que talvez morasse em alguma pequena cidade no interior de Goiás. Nada mais. Para mim, estes movimentos sinalizavam recorrente abandono, uma sentença de banimento sempre reiterada.



Certa manhã de nem sei quando meu filho telefonou avisando:

“O vô morreu.”

“Morreu como, onde? O que aconteceu?”

“Um acidente, parece, quando passeava de barco em Ubatuba.”

“E o que mais?”

“Mais nada. O enterro foi em São Paulo, mas quando eu cheguei ao cemitério todos já tinham ido embora. Inclusive meu tio.”

Assim morreu Moacyr outra vez, abraçado com seu desgosto, velado por seu único filho e por sua viúva jovem.


Não me lembro de ter chorado, apenas quedei-me encantada na varanda da casa, os olhos sombreados pela boina vermelha, cansada e sonolenta como criança à espera de colo. Lembrei-me dos cisnes de Tchaikowisky, cujo canto é derradeiro, véspera da morte, assim como dos olhos verdes, perdidos no tempo, e que agora ressurgiam por breve instante, apenas para reafirmar a recusa de um perdão que eu tanto busquei, mas que não reparei, dele não precisava a minha inocência. Estranho êxtase esse da morte sabida mas não reverenciada, pela falta de um corpo presente a ser velado; funeral simbólico de alguém que morreu e com ele levou algo de mim que também morreu e, por eu ser ninguém diante deste pai agora definitivamente ausente, talvez possa enfim gozar a redenção de ser eu mesma.


“ ... o balão vai subindo, vai caindo a garoa ...”


Se meu pai deixou bens, isso também não sei. Mas se me fosse dado escolher uma peça de herança sua pediria o livro que ele escreveu e jamais publicou: O Garoto Saraiva, sua biografia de menino órfão criado em colégio interno, educado para ser padre mas conquistado pelo amor da mulher que lhe deu uma filha para quem ele escolheu um nome de rainha.


“... uni, duni, tê ... salamê, minguê ... ”

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