Casamento: a história de Elisabete, a rainha do lar

Ela entra no quarto trazendo a xícara de café, percebe que ele está dormindo e fica por alguns segundos a admirar este seu homem moreno e cabeludo. O movimento do tórax largo e bronzeado mostra a respiração tranquila e os músculos, mesmo relaxados, denunciam a força de um corpo saudável, cuidado com boa alimentação e exercícios físicos que ele não dispensa.

Ela muito se orgulha dele, da sua inteligência aguda, da sua capacidade de discernimento, seu poder de expressar-se com rara propriedade. Ela reconhece nele todas as qualidades que não encontra em si mesma. Juntos formam um doze: ele vale dez pontos, farto de adjetivos, todos analisados cuidadosamente por ela. Como ela ama seu homem moreno, tão belo e tão seu!

Na quinta-feira, depois que ele sai, vestindo terno impecável, Elisabete prepara-se para ir às compras. Ajeita os óculos sobre o nariz pequeno, calça confortável tênis e veste a velha calça jeans que tão bem disfarça a largura de seus fartos quadris. Prende os cabelos com presilhas plásticas, apanha a lista de compras e parte satisfeita para o supermercado.

Hoje é dia de comprar queijos, salgadinhos e cerveja para o programa de fim de semana, quando devem receber alguns amigos para jogar buraco. Raramente saem para ir ao cinema, mas, o que fazer dependerá exclusivamente da vontade dela. O que ela preferir, ele fará com o maior prazer, porque a ama e a sexta-feira é toda dela. Elisabete considera se uma mulher de sorte.

Ela sente-se muito feliz em razão do carinho que ele lhe dedica e dos mimos que lhe faz. Por outro lado, ela se assume como viga mestra da casa, tomando ao colo seu menininho sempre que algo sério o aborrece no trabalho ou algum outro tipo de problema lhe acontece ou quando a insônia o molesta ou ainda quando, durante o jogo de futebol, um adversário tranqueira lhe chuta as canelas.

Tomam café juntos todas as manhãs, aproveitando para discorrer sobre amenidades: um ou outro tópico da atualidade, uma ou outra fofoca sobre celebridades ... O bastante para que ela reconheça o quanto ele é bem informado e sabe transmitir lhe com clara visão uma síntese do panorama político e cultural do país.

Ela se tem por mulher de firmes convicções, já leu alguma coisa sobre o direito de acesso à informação por parte das mulheres. Tanto que, na próxima eleição vai votar em uma mulher, qualquer uma delas.

Entende um pouco de planejamento familiar, assim como o Papa ela é contra os métodos anticoncepcionais não naturais e inteiramente a favor da moral cristã. É contra o aborto, o divórcio, a pílula, os preservativos e os gays.

Acredita que hoje em dia as mulheres estão se desvalorizando demais, aproveitando sua liberdade para dar pra qualquer um.

Terminadas as compras no supermercado aporta seu carrinho em frente ao caixa e saca com rapidez e habilidade o seu talão de cheques.

Após escrever por extenso a cifra total, apõe com prazer sua bem desenhada assinatura na linha inferior. Anota o valor no canhoto mas não faz a dedução.

Do seu talão de conta conjunta não consta o saldo atual porque é ele quem controla a movimentação; a ela cabe apenas gastar.

O que mais uma vez demonstra o cuidado dele para com ela. Cálculos, ele os faz. Cuidar do lar já dá a ela tanto com que pensar que seria abuso da parte dele acumular sua mulherzinha com desnecessárias tarefas.

Ele sempre pensa nela em se tratando de dividir responsabilidades. Elisabete curte horrores o barato de ser bem casada e dar sempre para um homem só!

Sai do supermercado e retorna ao seu castelo doméstico sem maiores preocupações.

Aos sábados ela acompanha seu ídolo ao campo de futebol, onde irá exibir a perícia de grande jogador, surpreendendo com sua velocidade e presteza nos arremates, matando a bola no peito, disparando fortes tiros, marcando gols.

Se acontecer dele ser expulso de campo por algum juiz ladrão, Elisabete erguerá o queixo contrariada, despejando palavras rudes de defesa convicta a favor de seu atleta injustiçado.

Porém, ela prefere ao esporte das manhãs de sábado os saraus musicais das tardes de domingo, quando, ao invés da bola, seu ídolo versátil encanta mais uma vez e surpreende a todos ao tocar cintilante bateria.

Elisabete senta se confortavelmente ao lado de seu copo de refrigerante e entrega se ao mister de admirar extasiada seu homem moreno a enfrentar com maestria os címbalos e os taróis.

Seus íntimos sonhos, produtos inconscientes da distante adolescência, manifestam se impetuosamente e ela reencontra o príncipe encantado: alto, charmoso e elegante, catalizador das mais ricas qualidades que só os jogadores profissionais de futebol nos anúncios de produtos esportivos são capazes de destacar.

Ela suspira diante do astro resplandencente. Como a lua diante do sol ela mesma se ilumina e enriquece, num misterioso ato de pura alquimia.

Neste sublime instante pontuado pelo hierosgamos (o casamento sagrado), enquanto ele vibra os metais e fere os tambores vigorosamente, ela enfim compreende que o Dr. Eic Berne está certíssimo quando diz: você está OK, eu estou OK!

Elisabete sente se próxima ao nirvana. Porém, percebdendo que outras mulheres da platéia também se excitam diante do talentoso músico, passa a agitar sua mão esquerda para que todas compreendam, vendo o faiscante brilho de sua aliança, que ela é a única dona do belo astro, fonte dos seus prazeres e da sua realização.

Outros dias passam como um trenzinho que passa. Puííí ... piuííí ...

A vida segue e Elisabete viaja na vida sem sair do seu lar, protegida e amada pelo seu homem forte. Raras mulheres são felizes como ela, plenamente satisfeita em todas as suas necessidades, guardada dos perigos de um mundo de trabalhos exaustivos, de sofismas e de enigmas atordoantes.

Para que escalar montanhas se Elisabete já há muito jogou fora a bandeira que poderia fincar no topo?

Tudo o que lhe importa é sentir se amada e protegida. Para sempre.

O trenzinho segue sem parar, apitando: Piuííí ... piuííí ...

Nele seguem Elisabete e seu homem forte rumo a um futuro desconhecido e imprevisível. Mas, para ela, o importante é o agora, onde ela desfila contente, com manto e coroa, de braço dado com o seu namorado.

Piuííí...??

***


Esta história pode ser considerada um conto de fadas, e, como tal, cheia de alegorias, mas exatamente por isso, existir no imaginário de muitas mulheres ativas e inteligentes.

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