Análise de caso real

O homem vem debruçando-se ao longo do tempo sobre o mundo dos fenômenos, em busca de significados apropriados, de interpretações acuradas, tanto quanto tem se exaurido na produção de significantes que possibilitem construir explicações ontológicas para o universo, este sim, sempre atual, atuante e efetivamente mais rápido e eficaz que a mente humana, na elaboração de efeitos psico-físicos, que talvez mais não sejam que um reflexo de si mesmo.


O mundo fenomenológico parece estar aí simplesmente porque está aí; sem finalidade, sem razão de ser, sem objetivo específico, embora permita uma observação continuada por parte do homem, este fenômeno auto-nomeado observador, possuidor talvez de um espírito auto-consciente, possivelmente um observador continuamente observado.

Quando a velocidade da luz é já ultrapassada dentro de um acelerador de partículas, continuamos a submeter a consciência humana a recorrentes considerações: haverá um movimento linear chamado tempo, um fluxo contínuo de energia chamado pensamento, uma dicotomia entre um saber interno (consciente e inconsciente) e um saber externo, uma metapsicologia que explique a palavra, esse evento psicofísico ao mesmo tempo maravilhoso e corriqueiro? Uma topografia que configure o fenômeno chamado universo? Talvez Alice se perguntasse: Há quanto tempo estou aqui? Onde é aqui?

Alguns deficientes auditivos não falam porque não ouvem; não há como repetir o modelo acústico. E eu, penso porque falo? Ou falo porque penso? Pergunto-me se é possível experimentar o saber em uma sociedade que impõe práticas sistemáticas para a aquisição de conhecimentos. A quebra de paradigmas deverá obedecer a uma metodologia? Poderei eu mesma analisar as configurações de minha consciência? Os conteúdos de meu inconsciente?

Na verdade, fascinante é fazer perguntas. Respostas são acidentes de percurso, possibilidades variáveis, versões ptolomaicas passíveis de alterações...



“A Garota Saraiva”
(Análise de Caso)


A personagem faz interpretações por si mesma ao longo da história e exibe sintomas que indicam deslocamentos, de modo a impedir o transbordamento da energia que busca irromper imperiosamente como resultado de constantes frustrações.

Seu organismo encontra-se recortado pelo psiquismo; manifesta fobias, angústias e dores físicas e emocionais.

O sofrimento psíquico aflora no organismo através de uma terceira instância, possivelmente chamada psicossomática. Os mecanismos bioquímicos acionados são postos a serviço do psiquismo, e nesta contramão, o inconsciente assume a gestão do pequeno feudo da consciência, com danos constantes à saúde do organismo.

O corpo, porque deprime, modifica o trânsito das funções biológicas e as pulsões assumem-lhe o ser, ignorando o domínio fisiológico do organismo e submergindo-o compulsoriamente.

O ego retira-se para a profundeza abissal, arcaica, diante da explosão dos afetos; a persona infantil se apossa da cena e "descreve" livremente a "sua" realidade, conforme sinopse produzida pelo imaginário.

Ela tenta baixar o nível alto de ansiedade cantando repetidamente canções infantis, à guisa de mantras capazes de afugentar seus fantasmas e de restabelecer o equilíbrio das funções orgânicas e emocionais.

Quando os afetos vêm à tona, o consciente acende o sinal de alerta e ela volta-se reiteradamente para a racionalização como mecanismo de defesa, o que faz o tempo todo no curso da história.

Suas falas trazem imbuída uma pergunta não manifesta, mas onipresente: onde fica a saída?

Percebe-se também que ela reprime um discurso aprisionado, castração oriunda talvez não apenas da energia sexual estanque, mas de um ímpeto criativo que deseja manifestar-se em plenitude através de trocas regulares de afeto, o que não ocorre em um único momento na história.

Ela exibe uma solidão compartilhada apenas com suas reminiscências - os outros personagens interagem entre si, mas nunca com ela, com exceção do pai, o interlocutor objeto de seu amor mas também de raiva deslocada e não expressada (reprimida).


Não há alívio para a dor do alegado abandono; sentida, ressentida e cristalizada por força da fala da figura materna através de mensagens bruxas.

A imagem da mãe aparece como fonte difusa de amor e de acolhimento, mas à pessoa real correspondem alheamento e indiferença, percebidos e vivenciados pela garota através das experiências descritas.

O sentimento de inveja e ciúme é direcionado para a estreita relação do irmão com a mãe , não propriamente para estas pessoas.

Sente inveja do vínculo que eles, supostamente, tão satisfatoriamente experimentam e do qual sentiu-se sempre excluída; vínculo que tenta justificar racionalmente como defesa e recusa em admitir ambivalência (amor e ódio, e também culpa, remorso, talvez mesmo um certo prazer oriundo de "tanta dor") ; a morte do primeiro irmão, ainda bebê e o posterior nascimento do caçula.

Ao longo da história, ela manifesta reiteradamente a sua inadequação ao meio familiar, o peso da culpa imposta , não justificada, porém assumida como procedente; uma última tentativa de obter significado na dinâmica da instituição parental.

Ela se mostra perceptiva das ações e reações de cada um no espaço familiar. Apaixonada pelo pai, deseja a parecênça como a mãe.

Não desenvolve o seu potencial; antes, dedica-se a "colecionar" conhecimentos (informações), na convicção de que assim conseguirá visibilidade entre os seus (talvez realizar o desejo de tornar-se um caroço de romã).

Os desejos reprimidos, sendo um deles o de tornar-se “ um caroço de romã”, e assim obter aceitação, reconhecimento e identificação com a sua "tribo", vão produzir através do recalque, a manifestação de diversas neuroses.

As cantigas infantis monocórdias, construções fantásticas e pacificadoras do espírito humano, repetidas ao longo dos eventos descritos, evidenciam a necessidade de superar a sensação de queda no vazio, de fragmentação do self, o que decorre não só do complexo de rejeição , ponto crucial revelado nas primeiras palavras da mãe, quando, grávida, segundo afirma, 'teve a criança rejeitada pelo pai'.(Mensagem bruxa)


Da ambivalência surge o primeiro fantasma: o pai que escolhe um nome de rainha para a filha posteriormente rejeitada.

A mãe, que aparece sempre às voltas com o filho caçula, é a figura idealizada com a qual ela deseja parecer-se, cujo lugar lhe apetece por ser garantia da conquista do amor paterno e do espaço de prestígio naquela família.

Deseja também assumir-se como protetora daquele “filho caçula” sempre incensado e, desse modo, quem sabe, se apoderar do falo faltante para escapar da fantasia de castração (e quiçá se apropriar do suposto poder da “mãe castradora”).

A mãe demonstra desinteresse pelo pai, sinaliza que o lugar de consorte estaria vago e introduz a figura paterna com acentuado desvalor na constelação familiar, para a qual a trilogia do Complexo de Édipo traz uma quarta personagem catalisadora: o caçula que, entretanto, na descrição que lhe faz a irmã é sempre objeto e jamais sujeito na dinâmica familiar. Na casa em que "reina a rainha", segundo palavras da garota, o cetro real é personificado por este menino-objeto, fonte do poder e realização da mãe má.

O texto se divide em três partes:


1) a garota narra a história na primeira pessoa, balizada por seus afetos e mecanismos de defesa;

2) produz questionamentos e traça considerações unilaterais (a história se desenrola no universo imaginário);

3) como observadora, postada a uma distância que (supostamente) permita isenção, procura apenas descrever as experiências de medo, abandono, rejeição, desamparo e morte vivenciadas por uma adolescente sob o jugo dos instintos e em trânsito para a inserção cultural.


Assim como na saga de Édipo, mesmo com "pés inchados", o caminhar para Tebas é compulsório. A superação da história funesta poderia ter se realizado, talvez, com um pouco do humor e das cores utilizadas por Offenbach em suas leituras musicais dos mitos gregos. O texto é contido, sintético e sem grand finalle.


O caso exibe aparentemente duas realidades, dois pontos de vista, não divergentes mas levemente distorcidos pelo fluxo do sofrimento psíquico. A terceira parte de que o texto se constitui é aparentemente pouco significativa. Enlaça com tons de fantasia as pulsões espalhadas pelos parágrafos; amarra com laços, nunca com nós, a convicção da garota de que através de palavras mágicas é possível apagar eventos para que não continuem “acontecendo na mente e ferindo no corpo”.

As cantigas infantis surgem como condão para acesso ao mundo mágico, igualmente adverso e ameaçador, um recurso dolente para alinhavar a paz interior. São como a prece que se faz guiando-se pelas contas de um terço e que se pode continuar rezando sempre, em círculos, sem parar, obsessivamente, em infinito movimento urobórico.

As cantigas parecem aliviar sua angústia. A palavra, oral ou escrita, permite ao inconsciente produzir a auto-cura através da manifestação e decodificação simbólica de seus conteúdos.

É perceptível um movimento pendular significativo na forma e no ritmo com que elabora o texto. Rezar e cantar; a díade mágica pontua o ritual através do qual ela procura afastar assombrações.


Laplanche, Jean
Vocabulário da psicanálise/Laplanche e Pontalis; sob a direção de Daniel Lagache; tradução Pedro Tamen. - 4ª. ed.- São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Fenichel, Otto
Teoria psicanalítica das neuroses / Otto Fenichel; tradução Samuel Penna Reis; revisão terminológica e conceitual Ricardo Fabião Gomes.- São Paulo: Editora Atheneu, 2004.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Conflitos Recorrentes entre Mãe e Filha

"Façamos o que é bom no tempo oportuno." Eclesiastes, cap. 11 (Bíblia)

OS 300 DE ESPARTA - UMA VISÃO FILOSÓFICA DO FILME